Um grave problema ainda não legislado, os contaminantes emergentes apresentam um risco velado e desconhecido por grande parte da população. Tais substâncias são produtos farmacêuticos e de higiene pessoal, hormônios, subprodutos de atividade humana e até mesmo drogas ilícitas encontrados em proporções de nanogramas por litro em mananciais para abastecimento público, assim como na água distribuída aos municípios após o tratamento.
Com vasta experiência no assunto, o professor Wilson Jardim do Instituto de Quimica da Unicamp apresenta os resultados de sua longa pesquisa realizada em diversos municípios do estado de São Paulo comprovando a presença desses contaminantes em diversos mananciais da região. O professor aponta para a diferenciação dessas substâncias e de patógenos, que possuem legislação e fiscalização de sua presença na água tratada. Os patógenos possuem ação aguda no ser humano, sua presença provoca uma reação imediata do organismo. Os contaminantes emergentes, entretanto, possuem ação “crônica”, uma vez que sua manifestação se dá a partir de um longo período, podendo se estender até mesmo à prole.
Essa característica torna mais difícil o estabelecimento de um nexo causal entre sua presença na água consumida e as reações verificadas futuramente. Por não apresentarem respostas imediatas, sua presença em mananciais é permitida pela lei, sendo tolerável por sua quantidade em padrões manométricos. Entretanto, ainda assim resultam em imunodeficiências e interferências endócrinas. “Pelo tempo envolvido em todo o processo, por ser a longo prazo, a investigação é muito mais complicada”, justifica o pesquisador ao ressaltar a dificuldade da comprovação.
Um extenso trabalho tem sido desenvolvido pelo grupo de pesquisa em parceria com a Polícia Federal no sentido de identificar locais de refino e consumo de drogas ilícitas. Mapeiam-se as áreas com maior incidência dessas substâncias e, com a ajuda de equipamentos específicos de análise de água em diferentes pontos da cidade, obtém-se possíveis locais de apreensão e dados estatísticos. Uma espécie de “saneamento forense”, com isso foi possível obter em Brasília, a partir das estações de tratamento, uma estimativa do consumo de cocaína e crack, tornando medições mais específicas e precisas e colaborando em diversos casos.
Muitos desses contaminantes são caracterizados como interferentes endócrinos, tais como cafeína, fármacos, sucralose, nanomateriais e subprodutos do tratamento de água. Designam-se por substância ou mistura que altera a função do sistema endócrino, causando efeitos adversos em um organismo saudável ou seus decendentes. O triclosan, fármaco utilizado como bactericida, hoje, é comprovadamente ineficiente para essa função. Entretanto, destrói alguns tipos de algas e torna-se perigoso na proporção de apenas 1,5 nanograma por litro.
“O Brasil é o terceiro maior país consumidor de produtos de higiene pessoal no mundo”, relata Jardim ao comentar a presença desses produtos na água. Os dados são alarmantes, uma vez que há pouca informação difundida. A cafeína, por sua vez, é um excelente indicador ambiental e de presença humana, já que sua origem vem do esgoto doméstico e, quando em contato com mananciais, resiste a todas as fases do tratamento de água. Foi encontrada cafeína em quantidades significativas em 70 das 77 amostras colhidas em Campinas. Na costa oeste dos Estados Unidos foram encontrados 80 nanogramas por litro dessa substância, o que já deixou os americanos assustados. Na represa Billings, em São Paulo, esse número chega a 19 mil nanogramas.
A presença hormonal também é influente. Hormônios da pílula anticoncepcional, como o estrogênio, quando presentes na água, desequilibram a população de peixes em certos biomas. Essas espécies tem o sexo definido posteriormente, no contato com o ambiente, o que provoca sérios riscos para esses animais. Em pesquisas no Canadá, evidencia-se uma reversibilidade dessa feminização, entretanto, só se torna efetivo após o fim o despejo desses contaminantes na água.
“Devemos conviver com o risco desconhecido da exposição?”, questiona Jardim. A legislação oferece respaldo para as empresas de concessão para tratamento de água, que permanecem intransigentes quanto ao diálogo acerca desses novos riscos evidenciados. O pesquisador aponta para uma necessidade da sociedade se posicionar frente a esses abusos, sendo essencial a universidade colocar o tema em pauta e atuar criticamente. “É necessário participar da formulação e elaboração de políticas públicas. Somente através de pressão da sociedade civil é que esses compostos passarão ser legislados e fiscalizados e as empresas passarão a ser mais rigorosas no tratamento da água que chega até a população”, defende o pesquisador.