A palavra da vítima, há mais de dois séculos, tem valor de prova em caso de estupros. Entretanto, isso não significa, necessariamente, um “benefício”, pois esse valor foi construído com o pressuposto de que algumas mulheres - no caso, as “de família” - falam a verdade e outras, não. Tal crença ou desconfiança no discurso dessa mulher perdura até os dias atuais.
É o que defende a pesquisadora Daniella Coulouris, da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas (FFLCH) da USP. Analisando trinta processos de estupro na cidade de São Paulo, a socióloga concluiu que as vítimas de estupro são obrigadas a narrar uma história bem contada a fim de convencer o juiz , quem legitima a punição ou a absolvição do réu de acordo com esse discurso.
Daniella notou a existência de uma prática perversa de obrigar a vítima a falar repetidas vezes detalhes do crime, a qual é intrínseca aos interrogatórios policiais e judiciais dos casos de estupro. Relatar o crime, as ameaças sofridas, as práticas sexuais que ela foi obrigada a realizar e cada pormenor do acontecido é uma situação complicada para essas mulheres. Tal circunstância praticamente as transforma em rés.“É difícil exigir uma total coerência do discurso da vítima quando ela é obrigada a falar de assuntos que ela se esforça para esquecer”, afirmou a socióloga.
O comportamento da vítima ainda influencia muito não só no resultado do processo, mas também na própria transformação de uma queixa em crime. Perguntas não relacionadas ao fato em si, mas sim à conduta dela e do acusado, são feitas com o objetivo de o juiz classificar aquele acontecimento como estupro ou não e aquele réu como criminoso ou inocente. E qualquer discordância em relação a um ou outro depoimento, qualquer detalhe um pouco confuso será utilizado como “prova” a favor da defesa, caracterizando o depoimento da vítima como incoerente, contraditório e influenciando a decisão do juiz.
Um caso que chocou bastante a psicóloga fora um de uma mulher encontrada nua e amordaçada em um terreno baldio. Quando questionado sobre o acontecido, o acusado defendeu-se, alegando não ter mantido relações sexuais com a moça por se tratar de uma prostituta e de ela ter lhe pedido para amarrá-la. O réu foi absolvido.
Só os julgadores caracterizam alguém como estuprador e eles podem, de forma equivocada, considerar alguns elementos como relevantes para distinguir os homens “normais” dos “perversos”, baseando-se em um estereótipo criado para esse “criminoso sexual”. “No entanto, essa patologização da figura do estuprador não admite que um marido que força uma relação sexual com sua esposa, por exemplo, seja enquadrado nesse ‘rótulo’.”, analisou. Daniella. De acordo com a socióloga, são esses discursos sobre o estupro como um crime relacionado ao instinto sexual descontrolado que se deve desconstruir. “A concepção do estupro como uma violência de gênero ainda não é a tese preferida dos agentes jurídicos”.
A pesquisadora também observou nos processos que, geralmente, a fala dos juízes é “Absolvo o réu porque a palavra da vítima possui valor de prova, mas se mostrou contraditória e incoerente” ou “Condeno-o porque a palavra da vítima tem valor de prova e se manteve coerente durante todo o processo”. “No entanto, o juiz deveria condenar o réu porque esta situação é condenável, grave e violenta, o que mostraria, pelo menos, o reconhecimento jurídico da violência sofrida por essa mulher”, concluiu.