A temática feminista se ausentou da teledramaturgia brasileira na atualidade. Apesar de no final da década de 1970 e início dos anos 1980 a pauta feminista ter sido muito trabalhada na rede Globo, as novelas de hoje tratam assuntos sociais importantes apenas através de um merchandising social bastante raso. A antropóloga e professora Heloísa Buarque de Almeida analisou em estudo recente a construção de um ideal feminino mais autônomo e livre nas produções de televisão, e apresentou, nos Seminários Avançados sobre Diversidade um recorte centrado na série Malu Mulher, exibida na rede Globo entre 1979 e 1980.
Nova mulher
A série, exibida semanalmente, trazia um novo tipo de heroína. A atriz Regina Duarte, até então conhecida como “namoradinha do Brasil”, incorporava uma mulher intelectual, divorciada, que descobria os prazeres carnais e discutia temas sociais que iam desde a homofobia até o aborto. Malu Mulher marcou não só um período de constituição da televisão como meio hegemônico de formação cultural como também um momento de mudanças de valores que interferiu diretamente na reflexão sobre o que era ser mulher no Brasil.
“Partindo do pressuposto de que gênero não é uma particularidade do corpo e sim uma construção cultural e histórica, eu tenho procurado analisar a o papel da televisão nesse processo”, explica Heloísa. A antropóloga lembrou ainda que a televisão é parte fundamental da formação cultural dos brasileiros e por isso é um meio importante para tentar entender como os estereótipos femininos se formam e se modificam ao longo do tempo.
Polêmicas sociais
A inserção de papéis femininos mais fortes já vinha acontecendo há alguns anos nas novelas, mas foi só em Malu Mulher que essa presença se tornou central. A série abordava questões que permeavam os meios sociais, como as novas relações familiares. Nela, os vilões não eram o ex-marido ou alguma amiga invejosa, como acontece nos melodramas atuais, mas o casamento, o machismo e os velhos padrões sociais. A série discutia questões cruciais para o feminismo brasileiro da época.
Um dos episódios, intitulado de “Ainda não é hora” tratava da questão do aborto de forma explicitamente favorável. Heloísa lembrou que o tema até hoje não voltou a ser discutido de forma aberta na teledramaturgia brasileira. “Foi um escândalo. Os jornais do dia seguinte criticaram muito, os leitores mandavam cartas indignadas para a emissora. É até difícil acreditar que tenha passado pela censura”, reforça a antropóloga.
Censura
Sobre os censores do regime militar, Heloísa Almeida lembrou ainda que estes influíram em muitos episódios da série. Com a Lei da Anistia e as limitações que vinham sendo feitas à censura política, o regime acabou se voltando para as questões de costumes, e nesse âmbito a série era um prato cheio. Abordando de forma politizada a violência doméstica, o aborto e o lesbianismo, Malu Mulher foi diversas vezes censurada. Ainda assim, a pesquisadora conta que a série foi pioneira no retrato da sexualidade feminina, tendo mostrado pela primeira vez um orgasmo feminino na TV. A cena, bastante discreta e sugestiva, mostrava apenas as mãos de Malu e do parceiro entrelaçadas no momento do ato sexual.
A antropóloga conta que, apesar de toda a vanguarda representada pela série, as novelas da atualidade não seguiram a tendência. “Hoje vemos que a sexualidade feminina se tornou muito mais livre nas novelas, mas outras questões feministas foram completamente esquecidas”, ressalta.