Mário de Andrade, em uma viagem ao norte do Brasil, entrou em contato com o acalanto (popularmente conhecido como cantiga de ninar). Deste modo, passou a estudar seus aspectos técnicos e também analisá-lo como forma de conhecimento da nossa cultura oral. A reunião dos estudos do escritor neste sentido foi feita no Café Acadêmico de título O “tantum ergo virado acalanto”, ministrado pela professora Silvia de Ambrosis Pinheiro Machado.
O interesse de Andrade pelas cantigas de ninar começa em uma viagem pelo Amazonas. No município de Fonte Boa, o escritor escuta uma índia embalando o sono de seu filho com um acalanto. “Como viajante culto, Mário de Andrade reconheceu o texto e a melodia”, conta Silvia. Tratava-se do Tantum Ergo, um canto religioso entoado em latim, usado principalmente em procissões da festa de Corpus Christi.
“Mário de Andrade era um turista aprendiz, viajante atento e interessado às formas de expressão populares brasileiras”, afirma Silvia. Deste modo, o escritor passou a estudar, de maneira técnica, o acalanto. “Em 1929, ele publicou uma pequena narrativa dessa experiência, para ilustrar a influência do canto gregoriano na música popular brasileira”, afirma a professora.
Andrade dá ao acalanto um valor técnico-conceitual, encarando a cantiga como uma modalidade merecedora de reconhecimento, identificação e descrição. “Como professor, ele se preocupa em definir o termo como uma canção destinada a adormentar crianças, o mesmo e melhor que cantiga de berço”, explica Silvia.
Fonte boa da cultura oral brasileira
No entanto, Andrade não enxergou o acalanto apenas como uma forma de expressão musical que deveria ser categorizada e definida. Silvia conta que, alguns anos depois, o escritor dá à cantiga outra abordagem. “Em seu diário de viagem, O turista aprendiz, o acalanto aparece com outro conceito”, afirma a professora.
Andrade enxerga na cantiga uma forma poético-musical capaz de servir como “fonte boa” de conhecimento da nossa cultura oral. “Cresce de um termo técnico à metáfora fonte boa”, afirma Silvia. É a “fonte” do autêntico brasileiro.
Pois, no episódio presenciado por Andrade, converge uma série de conceitos característicos do Brasil. Por exemplo, a mistura da cultura ocidental – materializada pelo fato de ser um canto em latim – com elementos tipicamente brasileiros – como a figura da índia e a maneira de cantar desta. E também o contraste entre o popular (cantiga oral) e o erudito (canção gregoriana).
Além disso, há a presença da mãe como intermediadora cultural, havendo um processo de colonização, pela língua, entre esta e o bebê.
Silvia destaca a importância do estudo dos acalantos. “A canção de ninar ultrapassa o ambiente íntimo familiar. Por ser um objeto de cultura da infância, seu estudo pede uma abordagem ampla e interdisciplinar”, afirma. Ela também destaca o papel de Mário de Andrade como musicólogo e etnólogo. “Ele foi um organizador de elementos de nossa cultura oral”.