Não é de hoje que algumas classes são marginalizadas no contexto cultural, seja no cinema ou nas telenovelas. Inspirada nessas pessoas a antropóloga Renata Guedes Mourão, da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas (FFLCH) da USP realizou um trabalho etnográfico sobre a percepção das empregadas domésticas sobre a representatividade na telenovela Cheias de Charme (Rede Globo, 2012) em sua dissertação de mestrado “Espelho mágico: empregadas domésticas, consumo e mídia”.
Para realizar o trabalho, a antropóloga precisou imergir no mundo das “empreguetes”– termo que se popularizou com a exibição da novela – e se dedicar ao acompanhamento cotidiano das domésticas, como idas ao cabeleireiro, aos bailes ou a simples ação de assistir à novela juntas. “Com a estreia da telenovela Cheias de Charme, que tinha três empregadas domésticas como protagonistas, optei por realizar um estudo de recepção. Então passei a assistir, sempre que possível, à novela com algumas trabalhadoras, em suas próprias casas ou em seus locais de trabalho”, conta Renata.
Representação e realidade
Para Renata, um dos pontos mais interessantes foi observar que, apesar de possuírem pouco capital cultural, as domésticas conseguem ter uma visão relativamente crítica dos papéis e dos enredos que as representam. “Ao assistir às protagonistas de Cheias de Charme, foram diversas as reflexões de que a novela era interessante por retratar o emprego doméstico – sempre tão desvalorizado –, mas era também uma fantasia, era exagerada, não era a representação fiel da ‘realidade’”, conta. “Dialogando com o universo das fábulas, era a expressão da Gata Borralheira que vira Cinderela, agora encarnada na trabalhadora da ‘nova classe média’, ou da ‘classe C’”, completa a antropóloga.
A dissertação faz uma análise interessante sobre o processo de melhora na representação das domésticas pela televisão, transformação relacionada às mudanças que a profissão passou nas últimas décadas. A desigualdade entre patroas e empregadas deixava de ser encenada como um fato persistente e intransponível. A aderência desse discurso - também entre as próprias trabalhadoras – deve-se ao fato de que essas mulheres, antes consideradas como excluídas do mercado por serem muito pobres, tornaram-se “consumidoras da classe C”. Assim, fica evidente que compreender esse processo social requer compreender também os interesses mercadológicos. “Ou seja: as empreguetes de Cheias de Charme puderam reivindicar na televisão direitos trabalhistas, respeito e cidadania no ‘mundo ficcional’, por terem se constituído no ‘mundo real’ como consumidoras a serem levadas a sério e fidelizadas pelas emissoras de televisão”, explica.
PEC das domésticas
Segundo a antropóloga, ainda que a telenovela não tenha tido influência direta na aprovação da PEC 72/2013, popularmente conhecida como PEC das Domésticas, para algumas mulheres pesquisadas a conquista era fruto também da militância ficcional das “empreguetes”. “Embora não seja possível mensurar o quanto a maior visibilidade dada nacionalmente a essa personagens na televisão contribuiu para a aprovação da emenda constitucional, tal argumento chamava a atenção para a circularidade entre ficção e realidade diante da importância da indústria cultural no país, sobretudo no meio social estudado”, argumenta a antropóloga.
O preconceito persiste
Ao analisar também o consumo de outros programas populares no rádio e na TV entre empregadas domésticas, a dissertação pretende mostrar, sem desqualificar as produções audiovisuais, como o consumo de bens culturais ditos “popularescos” ainda funciona como instrumento de manutenção do preconceito de classe, como marcador social. “Entrelaçam-se aí submissões, negociações e resistências, difíceis de serem resolvidas, mas importante de serem identificadas. Nesse sentido, talvez o trabalho seja válido por revelar nuances e aspectos menos óbvios acerca desse enorme grupo profissional.”