ISSN 2359-5191

24/09/2013 - Ano: 46 - Edição Nº: 69 - Sociedade - Faculdade de Filosofia Letras e Ciências Humanas
A representação das domésticas na televisão
Telenovelas apresentam as domésticas como uma versão contemporânea da Gata Borralheira que se torna Cinderela, aponta pesquisa
Cheias de Charme, novela da Rede Globo que transformou as domésticas em protagonistas

Não é de hoje que algumas classes são marginalizadas no contexto cultural, seja no cinema ou nas telenovelas. Inspirada nessas pessoas a antropóloga Renata Guedes Mourão, da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas (FFLCH) da USP realizou um trabalho etnográfico sobre a percepção das empregadas domésticas sobre a representatividade na telenovela Cheias de Charme (Rede Globo, 2012) em sua dissertação de mestrado “Espelho mágico: empregadas domésticas, consumo e mídia”.

Para realizar o trabalho, a antropóloga precisou imergir no mundo das “empreguetes”– termo que se popularizou com a exibição da novela – e se dedicar ao acompanhamento cotidiano das domésticas, como idas ao cabeleireiro, aos bailes ou a simples ação de assistir à novela juntas. “Com a estreia da telenovela Cheias de Charme, que tinha três empregadas domésticas como protagonistas, optei por realizar um estudo de recepção. Então passei a assistir, sempre que possível, à novela com algumas trabalhadoras, em suas próprias casas ou em seus locais de trabalho”, conta Renata.

Representação e realidade

Para Renata, um dos pontos mais interessantes foi observar que, apesar de possuírem pouco capital cultural, as domésticas conseguem ter uma visão relativamente crítica dos papéis e dos enredos que as representam. “Ao assistir às protagonistas de Cheias de Charme, foram diversas as reflexões de que a novela era interessante por retratar o emprego doméstico – sempre tão desvalorizado –, mas era também uma fantasia, era exagerada, não era a representação fiel da ‘realidade’”, conta. “Dialogando com o universo das fábulas, era a expressão da Gata Borralheira que vira Cinderela, agora encarnada na trabalhadora da ‘nova classe média’, ou da ‘classe C’”, completa a antropóloga.

A dissertação faz uma análise interessante sobre o processo de melhora na representação das domésticas pela televisão, transformação relacionada às mudanças que a profissão passou nas últimas décadas. A desigualdade entre patroas e empregadas deixava de ser encenada como um fato persistente e intransponível. A aderência desse discurso - também entre as próprias trabalhadoras – deve-se ao fato de que essas mulheres, antes consideradas como excluídas do mercado por serem muito pobres, tornaram-se “consumidoras da classe C”. Assim, fica evidente que compreender esse processo social requer compreender também os interesses mercadológicos. “Ou seja: as empreguetes de Cheias de Charme puderam reivindicar na televisão direitos trabalhistas, respeito e cidadania no ‘mundo ficcional’, por terem se constituído no ‘mundo real’ como consumidoras a serem levadas a sério e fidelizadas pelas emissoras de televisão”, explica.  

PEC das domésticas

Segundo a antropóloga, ainda que a telenovela não tenha tido influência direta na aprovação da PEC 72/2013, popularmente conhecida como PEC das Domésticas, para algumas mulheres pesquisadas a conquista era fruto também da militância ficcional das “empreguetes”. “Embora não seja possível mensurar o quanto a maior visibilidade dada nacionalmente a essa personagens na televisão contribuiu para a aprovação da emenda constitucional, tal argumento chamava a atenção para a circularidade entre ficção e realidade diante da importância da indústria cultural no país, sobretudo no meio social estudado”, argumenta a antropóloga.

O preconceito persiste

Ao analisar também o consumo de outros programas populares no rádio e na TV entre empregadas domésticas, a dissertação pretende mostrar, sem desqualificar as produções audiovisuais, como o consumo de bens culturais ditos “popularescos” ainda funciona como instrumento de manutenção do preconceito de classe, como marcador social. “Entrelaçam-se aí submissões, negociações e resistências, difíceis de serem resolvidas, mas importante de serem identificadas. Nesse sentido, talvez o trabalho seja válido por revelar nuances e aspectos menos óbvios acerca desse enorme grupo profissional.”


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