Em 2010, Roger Abdelmassih, especialista em reprodução humana e um dos pioneiros a praticar a fertilização in vitro no Brasil, foi julgado e condenado por 56 casos de estupros e ato libidinoso.
Foi através da cobertura feita pela mídia sobre o caso de Abdelmassih que Lieli Loures, mestranda do Programa de Pós-Graduação em Comunicação da Escola de Comunicações e Artes (ECA) da USP, passou a avaliar a maneira como a imprensa manifesta o discurso machista em textos sobre crimes de violência de gênero – “no caso, crimes que acontecem com as mulheres simplesmente por elas serem mulheres”, explica.
O ex-médico, pois teve sua licença cassada, foi sentenciado a cumprir 278 anos de prisão, “mas hoje está foragido, e a imprensa fala muito pouco sobre isso”, afirma Lieli.
Para desenvolver seu estudo, nomeado Crime sem castigo - Questões de gênero na imprensa brasileira: o caso Roger Abdelmassih, Lieli diz ter usado uma linha de pesquisa teórica na qual acredita-se que “não existe um texto que não esteja impregnado por alguma ideologia. Então, ao fazermos a leitura de um artigo, devemos descobrir qual ideologia que está sendo passada através dos elementos do texto. Através da análise de como é que a seleção das palavras, a estrutura do texto e a disposição da ordem de raciocínio vão influenciar na história”. Assim, por meio da leitura da primeira matéria que tornou público o caso de Abdelmassih – divulgada em janeiro de 2009, pelo jornal Folha de S. Paulo – Lieli encontrou consideráveis manifestações do discurso machista.
No texto, ao invés de utilizar a palavra “vítimas”, o jornal apresenta a palavra “acusadoras”. De acordo com a pesquisadora, quando em uma situação na qual oito mulheres - que era o número de mulheres que até então tinham denunciado o médico - afirmam ter sofrido agressão sexual de um médico, dentro de um consultório, e a reportagem diz que essas mulheres são “acusadoras”, “o que isso induz o leitor a pensar? Que quem é a vítima dessas acusações é o médico”, afirma.
Outro exemplo é a questão de que a única vez que a palavra “estupro” aparece no texto é apenas para classificar estupro como “ato libidinoso” e diferenciá-lo de “atentado violento ao pudor” - que configura uma forma de assédio mais agressiva. Isso porque na época havia acabado de acontecer algumas mudanças na lei, e o estupro passou a englobar o ato libidinoso.
Porém, o texto faz a diferenciação entre “estupro” e “atentado violento ao pudor”, mas não explica que um ato libidinoso pode conter um estupro. “É uma informação que é dada pela metade, e que deixa o leitor com a impressão de que não houve um estupro, diminuindo a carga de violência do crime”, comenta Lieli.
O artigo ainda termina com uma fala do médico, na qual ele coloca em dúvida a palavra das mulheres. Essa fala, então, se torna uma fala oficial do jornal, afinal foram os jornalistas que escolheram publicá-la.
De acordo com a pesquisa, esse texto da Folha de S. Paulo, que abre a história de Abdelmassih, carrega em si uma carga ideológica suficiente para retratar o modo como a nossa sociedade lida com as mulheres vítimas de violência sexual. “Ao tornar público os casos de agressão contra mulheres, a imprensa se vale de um discurso que, em última instância, culpa a mulher pela agressão sofrida. E a nossa imprensa só faz isso, porque a nossa sociedade permite. A imprensa não cria um discurso do nada, ela está dentro de uma estrutura social maior.”, diz.
Fonte: Folha de S. Paulo
Violência contra mulher é problema de saúde pública
No Brasil, segundo dados coletados a partir da aplicação da Lei Maria da Penha, entre 2008 e 2012, 15.889 homens foram presos pela prática de violência doméstica. É interessante ressaltar que a Lei Maria da Penha fez sete anos em 2013 e que, antes dela, não existia nenhuma iniciativa pública de levantamento dos números de crimes contra as mulheres. “A Lei Maria da Penha me dá dados e, mais que isso, justifica a minha pesquisa. Pois os números levantados demonstram que esses casos de violência devem ser considerados problemas públicos”, afirma a pesquisadora.
Lieli então propõe: “Seria interessante pensarmos quanto esse tipo de crime representa para os cofres públicos, tanto no que se refere aos gastos com sistema judicial e penitenciário, quanto ao que se refere aos gastos no sistema público de saúde, no atendimento das vítimas”. Nessa perspectiva, a violência contra a mulher seria percebida como um problema que se refere a toda a sociedade, e não apenas ao núcleo particular da vítima. Afinal, o ato violento contra a mulher dispara todo um sistema no qual é utilizado o dinheiro do cidadão contribuinte.
“No entanto, ao invés de tratar o problema por este ângulo, vemos a imprensa encerrar a questão no meio doméstico, tratando-a preferencialmente sob a ótica do espetáculo, como ocorrido no caso do goleiro Bruno, ou como no caso Roger Abdelmassih”, afirma.