São Paulo (AUN - USP) - O leitor pode até não saber, mas neste exato momento é provável que milhares de bactérias da espécie Escherichia coli estejam se reproduzindo em seu intestino. Na maioria das vezes não há motivos para alarme, já que se trata de um organismo naturalmente presente na fauna intestinal. No entanto, algumas variantes contraídas por meio de alimentação e de água não tratada causam fortes desarranjos intestinais. A distinção entre os diversos tipos de E. coli e a criação de uma vacina são desafios que mobilizaram os pesquisadores do Instituto Butantan nas últimas semanas. Com o apoio de um novo financiamento, além de dar prosseguimento às atuais linhas de pesquisa com palestras e debates, eles prometem dar mais fôlego à busca pela solução do problema que atinge milhões de pessoas no mundo todo.
São diversos os tipos de E. coli causadoras de diarréia, cuja distinção é definida pelos fatores de virulência apresentados por cada tipo. A ETEC (E. coli enterotoxigênica), popularmente conhecida como mal ou vingança de Montezuma, cujos sintomas são causados pelas toxinas termo-estável (ST) e termo-lábil (LT), gera diarréia aquosa e afeta principalmente regiões da América Latina, África, Ásia e Oriente Médio. Já a EHEC (enteroemorrágica) é mais característica de países desenvolvidos e é transmitida principalmente pela ingestão de carnes, leite e derivados contaminados na etapa do processamento; de incidência maior nos ruminantes, tem apresentado cada vez mais casos no Brasil. “Além de expressar a mesma intimina da EPEC (ver adiante), a EHEC secreta as toxinas de Shiga, que são as mais potentes citotoxinas até então conhecidas, que têm preferência pelas células epiteliais dos rins e causa a chamada síndrome urêmica hemolítica”, explica Roxane Piazza, pesquisadora do Laboratório Especial de Microbiologia do Instituto.
A intimina, proteína característica da membrana externa da EPEC (enteropatogênica), facilita a adesão bacteriana à mucosa intestinal, causando diarréias que, em crianças de até um ano de idade, podem levar à morte. A EPEC vitima milhares de recém-nascidos no Nordeste brasileiro sem que ainda seja possível realizar um diagnóstico preciso da doença. “Existe um problema de falta de diagnóstico. O bebê é contaminado pela enteropatogênica e morre”, diz Marta de Oliveira Domingos, da mesma unidade de pesquisa. “Os kits que hoje estão disponíveis comercialmente são muito caros, por isso nossa preocupação em desenvolver kits rápidos, baratos e acessíveis à realidade brasileira para a detecção e diferenciação dos patótipos de E. coli diarreiogênicas”, completa Roxane. “Para a EPEC, é preciso hidratar oralmente; já na infecção por EHEC”, diz ela, ”é necessário um tratamento com antibióticos”.
Enquanto Roxane lida com métodos mais práticos de distinção dos diferentes patótipos da bactéria, Marta pretende trabalhar no desenvolvimento de uma vacina conjugada para essas variantes, e diz que uma nova esperança surgiu recentemente com o uso de polissacarídeos. Seu orientador no doutorado, o pesquisador David Lewis, do St. Georges Vaccine Institute da Universidade de Londres, reiterou a necessidade de se criar uma vacina para substituir a necessidade de antibióticos. “Há uma grande dificuldade em se fazer o teste ELISA, que é muito caro. O uso indiscriminado de antibióticos não é aconselhável devido ao surgimento de bactérias resistentes, por isso é fundamental desenvolver métodos mais baratos de distinção da E. coli e uma vacina para diferentes enterobactérias”, concluiu.
Em sua visita a São Paulo, Lewis ministrou palestra no dia 17 de junho sobre vacinação via mucosas nasal e oral no Instituto Butantan. O objetivo principal em privilegiar essas vias, segundo ele, é o de evitar contaminações por seringas. O St. Georges Vaccine Institute desenvolve programas voltados a estudos de doenças como shiguelose, AIDS e tuberculose que afetam principalmente países em desenvolvimento, tendo parcerias no Equador, África do Sul, Índia, Vietnã e Brasil, entre outros. No que tange ao projeto de identificação e classificação dos E. coli patogênicos, destacou-se pelo avanço nos estudos para a utilização dos melhores adjuvantes nas vacinas em teste. Os adjuvantes são substâncias que aumentam a resposta imune do organismo quando um antígeno é aplicado.
Somente do Laboratório Especial de Microbiologia, o Butantan conta atualmente com sete pesquisadores e diversos alunos da pós-graduação voltados para o estudo da EPEC, trabalhando com epidemiologia, fatores de virulência e diagnóstico. Além disso, a Fapesp aprovou recentemente um projeto temático envolvendo alguns setores do Instituto e do Departamento de Microbiologia do ICB/USP, voltado especificamente a um tipo de EPEC atípica que tem aparecido com maior freqüência nos últimos anos. “Pouco se sabe sobre este patótipo, que parece ser um patógeno com fatores de virulência de alguns dos outros”, conta Roxane Piazza, “mas esses resultados teremos ao longo dos próximos quatro anos”.